Muito tem se falado sobre o filme O Milagre na Cela 7 nas redes sociais brasileiras. O filme, que é uma versão turca de uma película sul-coreana, narra a história de Memo, um pai com algum tipo de especificidade mental não esclarecida, e sua filha Ova.
Durante o período de quarentena, tenho buscado conteúdo para me entreter e resolvi dar uma chance ao longa, até porque já morei na Turquia e gostaria de relembrar a vivência.
Memo, é acusado de um crime que não cometeu e os personagens em seu entorno tentam provar sua inocência. Uma trama bem simples e óbvia. O que me chamou a atenção foi o fato do filme ser uma representação muito fiel do que eu conheci da Turquia durante os nove meses em que morei por lá.
A Turquia vive hoje um regime totalitário, embora não seja considerado uma ditadura oficialmente. Seu presidente, Erdogan, é um tirano que determinou prisão a qualquer um que venha a criticar seu governo que já dura mais de uma década. E isso é reflexo de uma sociedade intolerante.
Quando ficamos chocados com as cenas de violência gratuita do filme, não imaginamos que aquela é a realidade atual do país, embora a trama se passe na década de 1970. Armas de fogo estão nas vitrines de inúmeras lojas pelas ruas como se fossem sapatos, o que me fazia imaginar que qualquer um poderia estar armado. E de fato estavam.
Um aluno de 19 anos me narrou quando atirou num colega rival quando ainda tinha 17 anos. Ele não recebeu nenhum tipo de medida sócio-educativa. E isso diz muito sobre a percepção deturpada da justiça turca aplicada a narrativa de Memo.
As personagens femininas seguem a realidade das mulheres turcas: donas de casa, mães, avós, professoras… Não é dada a elas qualquer outra possibilidade. Sempre à espera da ação masculina. Embora Ova, uma criança, aponte para a inocência do pai e apresente uma testemunha, ela é desacreditada. No fim, Memo é salvo por outros homens. É pertinente considerar o período histórico, mas lamento dizer que as turcas ainda enfrentam a mesma realidade. Uma vez vi uma aluna de 17 anos chorar numa prova oral ao narrar seu drama em ser obrigada a se submeter a um casamento arranjado caso não encontrasse um marido até os 25 anos. Ela não queria se casar.
Mesmo que o filme não pregue isso como algo justo, e o personagem não seja visto de forma negativa, não questionar que alguém se coloque para morrer no lugar de Memo é no mínimo problemático. Yusuf já cumpria sua pena há anos, e o que ele fez por Memo não diminui o peso de seu crime. Todavia, o conceito de justiça moral aplicado é completamente perigoso. Abre margem para aceitação de medidas de tortura e até mesmo sentença de morte.
A desigualdade social do filme é algo ainda muito latente no país. O comércio fica aberto até as 11 da noite pois as pessoas precisam trabalhar o máximo possível para garantir seu sustento, o número de pedintes pelas ruas é entristecedor.
Com todos esses fatos, a pergunta que fica é: como o filme pode estar sendo tão bem recebido? Eu teria duas explicações.
A primeira segue algo que eu também vivi na Turquia: a solidariedade e a compaixão. A construção social do país e seu governo são completamente problemáticos. A realidade lá é violenta, intolerante, desigual e radical. Mas isso não me impediu de fazer amizades e encontrar pessoas caridosas e empáticas. Guardo com muito carinho memórias dos cafés da manhã, dos jantares durante o Ramadã (mês sagrado mulçumano), do suporte dos meus alunos em momentos que fui vítima de intolerância. E isso é algo que cativa as pessoas. A compaixão da professora, dos colegas de cela do Memo, do coordenador do presídio… Isso é provavelmente o que mais cria empatia nos espectadores.
A segunda coisa seria o contexto em que nos encontramos. A pandemia, o momento de incerteza e a eminente crise econômica são fatores de tensão social. Em momentos como esses, as pessoas buscam por narrativas nas quais identifiquem o próprio sofrimento de alguma maneira. O Milagre da Cela 7 é um melodrama, gênero que despontou na literatura após a revolução francesa, e que dominou os cinemas norte americanos no período pós-crise de 1929. A situação apenas se repete.
No fim das contas, O Milagre da Cela 7 é um filme apelativo e que cria nas pessoas uma noção de humanidade complicada, inclusive por ser seletiva. A Turquia não poderia ter sido melhor representada em um filme.
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