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Como Anne With An E se perdeu



Ninguém poderia ficar mais entusiasmado com a última temporada de Anne With An E do que eu. Já nem sei mais quantas vezes reassisti as duas primeiras temporadas — especialmente a segunda. Eu participei da campanha contra o cancelamento da série após seu segundo ano, mas me arrependo de tê-lo feito.


Anne With An E era, até então, uma série que nos inspirava a continuar tendo esperanças num mundo tão complicado, especialmente se você faz parte de alguma minoria. O primeiro ano se focou em o que significa crescer sendo mulher, além dos percalços que uma criança orfã pode encontrar. O segundo se voltou para questões sobre racismo, homofobia, sem deixar de questionar os temas que já abordava.


Mesmo com assuntos tão complexos, a graça da história em Green Gables era justamente apontar para a realidade dura e, a partir dela, nos mostrar uma saída. A poesia do roteiro atrelada a fotografia e a belíssima direção de arte me davam o que posso resumir como “quentinho no coração”. Em todos os momentos em que alguma tristeza me afetava, eu abria a Netflix e reprisava algum capítulo (principalmente os episódios 07 e 10 da segunda temporada) e tudo parecia se iluminar. E é por isso que a terceira temporada me decepcionou tanto.


Para ilustrar, esses são os principais problemas:


1 — Anne se adequa à sociedade

A premissa da série é que Anne é uma garota imaginativa que não se encaixa nos padrões da sociedade. Mas a Anne que nos é entregue no último episódio é completamente moldada numa caixa de boneca de princesa: com um belo vestido, um penteado glamuroso, um corset, e à espera de seu prícipe encantado. Não é de longe a garota que se encanta com histórias e diz que será a “noiva da sua própria aventura”. Durante a série, Anne teve muitos problemas de autoestima pois não se adequava à norma e por isso se acha feia, nos fazendo questionar todos esses aspectos e enxergar as diferentes belezas. Quando Anne desce de sua escadaria, não parecendo nada consigo mesma, todos pontuam sobre quão linda ela está.


2 — A morte de Mary

Mary é a única mulher negra que tem algum destaque na série e foi introduzida na trama junto com Bash, com o qual se casou e teve uma filha. Era uma personagem com camadas: marginalizada pela sociedade, mãe solo de um filho problemático, sem familiares. Muitos arcos dramáticos poderiam ser construídos com esse background, mas não foi o que os roteiristas decidiram fazer. Deram a ela uma morte apressada e sem o menor sentido. Não houve qualquer preparação digna. E o que veio a partir disso pode ser problemático considerando que insinuaram um possível romance com a Mrs. Stacey, uma mulher branca, com Bash. Não é meu lugar de fala, mas já ouvi muitos questionamentos sobre como mulheres negras são trocadas por brancas na nossa sociedade.


3 — Ka’kwet

A série quer ser inclusiva, mas a inserção da trama da índia Ka’kwet e seus famíliares fora feita de maneira muito forçada, uma vez que a trama foi pouco desenvolvida e trouxe um final completamente inacabado, tanto que me fez rever os últimos episódios para ter certeza de que eu não havia dormido em alguma cena. Ka’kwet termina a série presa numa espécie de reformatório enquanto seus pais planejam resgatá-la. Não há conclusão. No fim das contas, apenas mulheres de etnia não-branca tem um destino infeliz.


4 — Mrs. Stacey

Quando ela fora apresentada, nos deparamos com uma mulher que ia contra o sistema, que não abaixava a cabeça e que lutava por seus ideais. Mesmo que em alguns momentos ela tenha mantido essa essência, em outros ela foi completamente apagada. A insinuação do romance com Bash, quando ela passou os primeiros episódios evitando relacionamentos por ser uma mulher independente, não faz muito sentido.


5 — Personagens secundários

Não temos um adeus a personagens que nos apegamos, entre a lista estão Mrs. Stacey, Jerry, Rachel… Por mais que suas tramas não fossem tão relevantes já nesse último ano, um adeus, ou ao menos uma última cena com eles era necessário.


É claro que a última temporada tem bons momentos, como a marcha por igualdade, mas ela nos rouba toda a esperança ganhada nos dois primeiros anos, e nisso está seu principal erro.

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